Salvador Dalí - 1904

“Todo mundo devia fazer terapia.”

(De: Saúde mental na pandemia – 77)

“Todo mundo devia fazer terapia!”

Será??

Ouço isto com certa frequência e apesar de ser grande entusiasta e praticante, minha resposta é: Não. Não acho que todo mundo deve ou deveria fazer terapia.

Seja do lado de cá como profissional da área, ou do lado de lá como paciente, acredito no processo terapêutico como o melhor (auto) investimento que se possa fazer.

Através deste tratamento, o indivíduo aprende sobre ele mesmo- sua estória pessoal e familiar; como se sente e reage, sua própria dinâmica. E ao mesmo tempo, passa também a perceber e entender melhor como os demais interagem com ele.

Ou seja, aprende a respeito dele mesmo e sobre os que estão à sua volta.

Parece curioso que sejamos tão informados, atualizados em tecnologias sofisticadas, conhecedores de tantos assuntos e, ao mesmo tempo literalmente tão ignorantes de nosso próprio funcionamento: de como e porque reagimos, o que nos assusta, confunde, dispara, energiza ou mesmo faz feliz.

Contudo, não se pode afirmar que “todo mundo deveria fazer” porque há pré requisitos para isto. Diria que são basicamente três, sendo o primeiro a necessidade.

Embora frequentemente alguns indivíduos digam que desejam “se conhecer melhor” como motivo para começar uma terapia, me parece sempre que a razão da busca por tratamento é porque não se consegue mais entender ou lidar sozinho com determinados aspectos da própria vida, dos relacionamentos, problemas enfrentados pela pessoa ou alguma dificuldade mais específica.

Isto não quer dizer que a fala de quem procura seja uma mentira proposital. O ponto aqui é uma generalização mesmo: não queremos de fato mudar, mas precisamos porque estamos tendo problemas com nosso modo de funcionamento anterior. Mudanças podem ser até consciente e teoricamente muito desejadas, mas são prioritariamente necessárias, ou mesmo imprescindíveis no momento.

Análogo ao nosso funcionamento fisiológico, o emocional também busca a preservação e manutenção. Dito de forma direta: não queremos (exatamente) mudar, mas o que fazíamos até então não funciona mais. Simples assim.

O segundo ponto é a disposição. Repito: Disposição.

A prontidão e motivação para encarar este processo que é bastante peculiar, assusta e provoca estranhamento em muita gente.

“Como assim? Eu converso com alguém que nunca vi antes, conto meus problemas, falo de assuntos difíceis e intimidades, sem saber nada sobre a vida desta pessoa? Como assim?!?”

“De que forma alguém que não me conhece vai me ajudar a lidar com minhas questões melhor que eu mesmo, ou algum amigo ou familiar? Isto não é possível.”

E o terceiro ponto é a coragem. Você expõe lados obscuros, “sombras” que já são difíceis de fazer contato sozinho, quanto mais perante alguém !

Necessidade, disposição e coragem precisam estar presentes ao mesmo tempo. Você pode saber ou até sentir que precisa de uma terapia, mas se não tiver abertura para encarar o processo, ele não acontecerá.

Há também vários estereótipos e distorções a respeito. Listarei alguns só para exemplificar:

“Terapia é essencial e todos deveriam fazer.”

“Terapia é somente para os fracos e/ou muito problemáticos.”

“É só para malucos.” (Sim, ainda ouvimos isso em pleno século XXI. Felizmente, cada vez menos.)

“Para os ricos.”

“É uma enganação. Ninguém pode saber melhor da sua vida do que você mesmo.” (Ou seus pais, par amoroso, amigos.)

Em contraponto, vamos lá:

Nem todos precisam, querem ou podem fazer terapia. É preciso ter determinação, humildade e força para seguir neste processo- ele é para os fortes. Os “problematicos” podem ter necessidades mais aparentes de tratamento, porém a gama de “necessitados” é mais ampla; basta ser humano para ter conflitos, dores e dúvidas, ou seja, qualquer um de nós…

Quanto ao aspecto econômico, duas observações:

Fazer uma faculdade que envolve anos de estudos custosos, estágios (na área clínica são quase sempre sem receber nada), e seguir investindo em estudos, cursos e especializações (sempre caros) sem parar, para “enganar os outros” parece um propósito bastante burro financeiramente falando…

Sua mãe, namorado ou amigos podem (e devem) ser o ouvido e ombro para lhe acolher, mas eles têm um envolvimento emocional com você e não possuem formação para trabalhar o que é necessário. Sem esquecer que podem fazer parte de alguns de seus próprios conflitos…

Em segundo lugar, e muito importante ressaltar, este é um dos poucos trabalhos onde profissionais- mesmo os mais experientes, frequentemente negociam o custo das sessões, muitas vezes atendendo por valores simbólicos. Além disso, há instituições de ensino e formação que oferecem atendimentos gratuitos ou sociais.

Em resumo: faz terapia quem tem desejo, coragem e modéstia suficientes para tal. O resto- como, onde e com quem será resolvido. A falta ou o limitado recurso financeiro não é impedimento para tal.

Há outra linha clássica de distorção a respeito do processo terapêutico, que basicamente se resume em 2 opostos:

O terapeuta que “lambe” suas feridas com você, como uma auto comiseração com eco. Você se queixa e o profissional faz coro: “É…coitado de você ! Com pais assim, não dá mesmo para ser feliz, crescer, ser bem resolvido ou sucedido…” (E neste caso, você ficaria dependente do terapeuta, claro, porque ele “te entende”.)

Outra é a terapia como tratamento de choque: um sofrimento emocional atroz e sem fim porque você fica só falando dos seus problemas, podendo até por isto, “aumentá-los”.

Sendo um trabalho que envolve emoção, pensamento, elaboração, entendimento, reorganização interna, interpretação, comportamento e uma série de pontos- muitas vezes pouco aparentes ou claros, é comum que haja dificuldade, dúvida e oposição.

Se trata de subjetividade e, como tal, pode ser pouco compreendido e desvalorizado.

O processo terapêutico pode ser iniciado a partir de queixas ou demandas especificas, mas sempre envolverá trazer à tona seus medos, pensamentos, sentimentos, emoções, padrões, vulnerabilidades, elaborações de estórias de vida, família. São auto revelações, relatos e reflexões sobre seus relacionamentos mais importantes, suas experiências e como as vivenciou.

E o vínculo com o terapeuta é fundamental para que este trabalho aconteça. É natural que indicação do profissional como alguém capacitado e recomendado para o trabalho seja um incentivo, mas a empatia é imprescindível.

Certamente o termo é familiar, pois falamos bastante em empatia, mas aqui ela pode ser definida como sentir acolhimento, entendimento, confiança e tranquilidade com aquele terapeuta.

Muitos diplomas na parede, indicação vinda de alguém muito confiável, cargos em instituições, publicações científicas, mídia social ativa, etc, não serão suficientes se você não se sentir à vontade junto com o terapeuta.

A irrupção da Pandemia mostrou a importância dos cuidados com a saúde mental; o quanto a integração de aspectos psíquicos e emocionais é fundamental para o nosso bem estar. Isto é de grande importância para derrubar preconceitos, tirar este aspecto da saúde de longínquos bastidores e ajudar quem necessita.

Terapia é uma jornada árdua de fato, mas as descobertas, insights e mudanças que provoca são lindas. Desculpem a pieguice, mas são lindas mesmo; emocionam ao paciente e ao terapeuta. É nosso melhor reconhecimento do trabalho ver alguém se descobrir, entender e agir melhor consigo mesmo, com os outros e com a vida.

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