(De: Saúde mental na pandemia – 63)
Ela passa o dia inteiro fotografando e postando para os milhares de seguidores.
Acorda, se veste para ir à academia. Selfie: “Bom dia! Me arrumando para treinar!!” (Leve make antes. Sem chance de aparecer com esta cara de noite maldormida!)
Escolhe a roupa. Esta parte é mais fácil porque são de marcas patrocinadoras. Selfie: tira por volta de 10 até encontrar a melhor e sai.
Na academia, outras selfies: “Barriga tanquinho dá trabalho, mas compensa qualquer sacrifício !”
Almoço com as amigas. Todas bonitas e animadas como ela, pratos lindos com refeições saudáveis, coloridas, e devidamente fotografadas, claro !
Ocupações do dia a dia, compromissos de trabalho, eventos familiares e sociais. Todos registrados, postados e curtidos. Muitos likes, corações e comentários: “Linda!”, “Deusa!”, “Inspiração!”, “Você nos motiva a buscar o melhor!”
Evento noturno. Animadíssimo; gente bonita, jovem e alegre. Parece muito descolado e divertido. Mais selfies: “Com os amigos na night”.
Dia bom, crescimento do número de fãs e seguidores. Patrocinadores contentes, renda e novos contatos aumentando, mas ela vai para sua casa (espetacular) sozinha e se sentindo meio triste e solitária.
Seria bom conversar com alguém, dizer como se sente…Mas, são 4 da manhã e não é hora de ligar para ninguém.
Tem 2 amigos: uma de infância e outro do tempo da faculdade. Embora não convivam socialmente, são as únicas pessoas com quem pode falar de tudo e ser ela mesma.
Às vezes se pergunta se é uma coincidência que ambos tenham vidas tão diferentes da dela: Carla é bióloga, tímida e passa os dias trabalhando no laboratório, lugar onde se sente bem e feliz. E João, que trabalha com sistemas em uma empresa, é um adorável nerd com certa fobia social. Nenhum dos dois costuma aceitar seus convites para “eventos incríveis e agitados com gente linda e popular”, mas é com eles que ela recarrega suas baterias e pode contar.
Milhares de seguidores a veneram, mas se sente sozinha e não pode falar sobre isso na rede. Ela é um produto, uma influencer, portanto não pode aparecer murcha, de bola baixa.
De acordo com levantamento recente o jogador de futebol Neymar, tem 150 milhões de seguidores. A cantora Anitta 53 milhões, a atriz Bruna Marquezine tem 40,5 milhões e a influencer Kim Kardashian, 200 milhões.
Duzentos milhões !!!!!
Só para termos a dimensão destes números, a população do Brasil tem 210 milhões, a da França 65 milhões, e a da Argentina, 45 milhões de pessoas.
Ou seja, algumas celebridades, youtubers e influencers tem mais seguidores do que a soma da população de alguns países e isto é assombroso.
De um lado, entendemos claramente o alcance destas pessoas para vender produtos, ideias e estilo de vida. E por outro, podemos pensar na ilusão que estes números causam nos próprios protagonistas.
Descontados os já esperados “haters” que vão criticar e denegrir, há milhões de pessoas reafirmando o quão fantástica, admirada e amada esta pessoa é.
Ela faz aniversário e recebe milhares de mensagens desejando o melhor. Idem quando quebra a perna ou sofre algum dissabor (publicavel, naturalmente). Se sente amada e valorizada mas, no fim do dia, está só…
Tem seguidores e fãs, mas em casa a única que a segue e fica ao lado tem 4 patas e não fala: sua gata Gigi…
Este era o cenário antes da irrupção da Covid e do isolamento: alguns mostravam um estilo de vida sorridente e, de fato, a vida parecia sorrir para eles também. Independente do que se passasse no mundo não virtual.
A partir da pandemia e do distanciamento, muitas coisas mudaram. Inicialmente, o trancamento e isolamento foram sustos. Desprevenidos, muitos aumentaram a interação com os outros, e neste movimento, muitos blogueiros e influenciadores até incrementaram suas conexões: #tamojunto, #maisfortes, #voltaremos, etc.
Seguidores se agarraram aos seus “gurus” e estes, por sua vez, se ancoraram nos milhares de fãs. Retroalimentação positiva.
Porém…
O tempo foi passando, o entusiasmo, criatividade e esperança murchando e a realidade se impondo cada vez mais.
Seguir alguém que não pode (ou deve) ir à nenhum lugar, ficou mais sem graça e, quem era seguido, sem ter muito o que mostrar em seu dia a dia, também foi confrontado com a realidade da porta para dentro. Dentro de si mesmo, dentro das relações reais, sem distrações, nem penduricalhos.
Não tendo muito mais o que mostrar e fotografar para postar, o que restou?
Retomou o contato com a família: conversou com os pais, que nunca entenderam muito bem aquele trabalho dela de “ganhar dinheiro para ir à festas”, com os primos, relembrando as férias que passavam juntos quando crianças e mesmo com alguns tios mais distantes.
Foi para Carla que ligou quando, apavorada, pensou estar com Covid. “Convidou” João para jantar com ela- cada um na sua casa, naturalmente, e conversaram, madrugada afora por telefone.
Entrou naquele grupo de Whatsapp de ex colegas da escola, que já haviam até desistido de fazer contato com ela, sempre tão ocupada.
Sentiu -se muito bem nestas interações e se perguntou porque esteve tanto tempo afastada destas pessoas que, afinal de contas, eram sua rede real.
E, apesar do momento estranho e difícil, teve a forte impressão de estar fazendo contato verdadeiro com ela mesma e com os outros. Numericamente bem menos gente que o habitual, mas fazendo laços mais consistentes.
O inesperado e imprevisível acontece e, muitas vezes ele é difícil ou mesmo trágico. Sendo impossível mudar o que ocorre, nós devemos aprender com as experiências.
Neste caso, a reflexão é sobre quantidade, qualidade e valores:
Queremos uma multidão de seguidores, adoradores anônimos? Uma legião de fãs para quem somos sempre (e somente) lindas e felizes?
Isto nos satisfaz? (Aliás, acreditamos que podemos ser assim 24×7?)
Ou queremos aceitação, acolhimento e afeto de família e amigos? Mesmo que sejam somente dois…