(De: Saúde mental na pandemia – 71)
“Estou te ligando da sala de reuniões do escritório, mas estou sozinha e com tempo para a sessão.”
“Estacionei o carro no supermercado. Minha mulher está fazendo as compras enquanto falo com você aqui.”
“Me tranquei no quarto para fazermos a sessão. Pedi ao marido para cuidar das crianças enquanto você me atende.”
“Desci para ter a sessão na rua. Em casa está confuso e não tenho privacidade.”
No play, carro, praça, rua, quarto, cozinha, closet e até no banheiro. Assim nos viramos inicialmente- pacientes e terapeutas, no início do isolamento. Depois, cada um se organizou dentro do cotidiano de trabalho e familiar, para voltar a ter o momento (fixo) de privacidade para fazer sua sessão de terapia.
De minha parte, posso dizer que foi bastante tranquilo em todos os aspectos. Sendo uma forma de trabalhar já experimentada e familiar, foi questão de organizar alguns horários de acordo com as mudanças e seguir trabalhando.
Ao longo de nossa formação como psicólogos (em qualquer linha) aprendemos que existe o chamado “setting terapêutico”: a conformação ou “cenário” profissional onde se dará o atendimento. Ambiente seguro, privado, acolhedor e confortável para o paciente ser recebido para o trabalho.
De acordo com o que cada linha teórica e prática requer, esta ambientação varia: o divã do psicanalista, estar de frente para o paciente, terapias que envolvam trabalho corporal, etc.
Importante ressaltar que, independente do manejo prático sugerido por cada linha de trabalho, sempre houve a forma particular de cada terapeuta. Há profissionais tremendamente competentes, sendo heterodoxos em termos de setting e outros, igualmente competentes, que não abrem mão do protocolo e local.
E, com a observação, me pareceu claro que os encontros terapêuticos se dão de forma natural: paciente e profissional tem afinidade, e então trabalham juntos.
De qualquer maneira, antes da Pandemia estávamos todos- profissionais e pacientes, em funcionamento azeitado. E então, o mundo virou de cabeça para baixo e tivemos que nos reorganizar. Susto, choque e incertezas.
Em Março de 2020 nos trancamos em casa- voluntariamente para quem teve esta possibilidade.
Alguns tiveram que parar de trabalhar imediatamente, sem saber quando e como voltariam. Outros ficaram imediatamente sem trabalho, pois certos setores pararam.
E certos escritórios, empresas e setores aderiram rapidamente ao modo remoto; sendo que para alguns, já tendo funcionado de maneira remota pela própria natureza do trabalho, a mudança foi mais suave.
Os que prestavam serviços e profissionais liberais por exemplo, reagiram de formas distintas: uns pararam por muito tempo até conseguir se reprogramar. Outros, interromperam por poucos dias ou semanas até se organizar técnica e logisticamente para seguir trabalhando. E houve aqueles que não deixaram de trabalhar um só dia.
Assim aconteceu para boa parte dos psicoterapeutas. Felizmente.
Muitos de nós já estávamos acostumados a atender pacientes de forma remota por motivo de viagem: estando a trabalho em outra cidade, às vezes era impossível ir ao consultório e não havia motivo para deixar de ser atendido, uma vez que se trata de uma interação verbal que pode acontecer por telefone- com ou sem vídeo.
O mesmo em situações de pessoas que foram deslocadas pelo trabalho, precisando passar temporadas em outras cidades ou países, e já se encontravam em terapia anteriormente- em processo e já vinculadas ao profissional. Então continuaram sendo atendidas pelo mesmo, passando para o modo remoto.
E, não menos importante: o que já acontecia dentro dos percalços do dia a dia: “Não tenho condições de ir ao consultório hoje porque minha filha está com febre e não quero sair/chove torrencialmente/acabei de saber que terei que ficar no escritório até tarde porque houve um problema no trabalho/me sinto mal fisicamente, mas quero ter a sessão, e várias outras situações.
Isto, para muitos de nós já acontecia regular e cotidianamente. Quantas vezes já atendi pessoas por telefone porque seria complicado ou impossível de outra forma? E foi muito proveitoso- para quem foi atendido, para manter seu horário e para o processo, que não foi prejudicado porque não pudemos nos encontrar presencialmente.
Existe o mundo ideal e o mundo real. No ideal, as condições são as melhores possíveis, os ambientes controlados e os integrantes organizados para a situação.
No mundo real, não é bem assim…
Antes de mais nada, deixemos claro que: Zero é zero.
Isto é, nenhum atendimento significa: nenhum atendimento. Você não será tratada, nem atendida por ninguém. Simples assim. É uma opção, e cada um deve decidir de acordo com suas prioridades.
Certamente não podemos generalizar porque (felizmente) cada um é um e reage de maneira particular. Houve, sim, quem parou a terapia por não se adaptar ao modelo remoto, mas as surpresas foram majoritariamente positivas. Até para alguns de nós que já sabíamos que o atendimento não presencial funciona.
Contudo, confesso que, embora tenha tido bastante experiência em atendimentos remotos, eu mesma me surpreendi com os bons resultados.
Estar em casa, em seu lugar, sem o stress do deslocamento no trânsito, da circulação em prédio comercial para a sessão presencial, fez diferença. A segurança e privacidade permitiram maior abertura e até rapidez para tratar de temas que talvez levassem mais tempo no atendimento anterior.
A sessão termina e você- abalada, impactada, de olhos vermelhos, aliviada ou mesmo feliz com insights da sessão, já está em casa ou bem perto dela.
A vida traz surpresas. Se tivermos coração e mente abertos e grandes doses de flexibilidade e humildade (importantissimos neste momento, se me permitem o conselho) poderemos operar maravilhas.
Pensemos juntos. Quem alguma vez imaginou que: Jantariamos juntos? Estudariamos à distância? Conversariamos em grupos enormes? Faríamos congressos, encontros, aniversários, shows, peças de teatro? Aprenderiamos a tocar instrumentos? Cantar? Bordar?
A lista é gigantesca. E o ponto é um só: experimentar. Ver se e como nos adaptamos ao que a realidade nos impõe.
O mar está revolto e nadar até a terra firme ainda vai demorar um pouco.
Pensar que podemos mudar a maré não é real. Por outro lado, ficar à deriva, boiando, e deixar acontecer é alienação. Portanto, precisamos de equilíbrio entre os dois pontos: nem a ilusão de que vamos mudar magicamente o rumo dos fatos, nem deixar tudo de lado.
Trata-se de: se cuidar e aceitar e respeitar a realidade, enquanto a acompanhamos, nos cuidando física e mentalmente para estarmos bem quando tudo melhorar.