(De: Saúde mental na pandemia – 75)
O que significa sorte?
Por definição: “…forças a que se atribuem o rumo e acontecimentos da vida, destino, acaso…”
Em nossa língua e de maneira coloquial, a palavra sorte está ligada a aspectos positivos: “Foi uma tremenda sorte estar no lugar certo naquela hora…”
E quando nos referimos ao que é negativo é mais comum falarmos em “azar” e não “má sorte”: “Foi um tremendo azar ter pego o caminho mais engarrafado da estrada…”
Parece até uma conjunção astral ou algo quase esotérico, porém os estatísticos, matemáticos e conhecedores das ciências exatas falam em chances, acaso, possibilidades.
Você joga um dado 6 vezes. Quais são as chances de cair no número 1,4 ou 6? 6 vezes !
E de cair no mesmo número por 6 vezes seguidas? Embora improvável, não é impossível que aconteça e caia 6 vezes no mesmo número…”
Assim me disse um jovem muito amado e inteligente, portanto a informação é, além de real, afetivamente incontestável!
Afetos à parte, falemos em sorte como possibilidade(s).
Na língua inglesa, o que chamamos de sorte é simplesmente “chance”, e há diferentes palavras e expressões para o que nós aqui chamamos de “sorte” e de “azar”.
Pensemos naquela frase deles: “Shit happens”. Isto traduzido literalmente é: “M. acontece”, ou mais delicadamente como dizemos aqui: “Dá ruim”. Acontece. Simples assim.
Uma estória real: um amigo de uma grande amiga estava dirigindo em uma estrada movimentada e em um ponto, um carro desgovernado que trafegava no viaduto acima despencou e caiu sobre o carro dele. A centímetros de matá-lo instantaneamente ou de causar grave dano e uma longa e arriscada hospitalização e recuperação.
E o que aconteceu foi que ele ficou em coma (e risco) por longo tempo, mas depois se recuperou e voltou ao normal.
Foi “azar”? Sim. A possibilidade de um acidente assim acontecer com tal precisão era absurdamente ínfima.
“Sorte”? Sim. Os médicos disseram que por milímetros o rapaz teria morrido ou perdido os movimentos para sempre e isto não aconteceu.
“Acaso”, talvez??
Outra estória real, que saiu no jornal de 11/Setembro/21 quando se completaram 20 anos dos ataques e destruição das 2 torres do World Trade Center em Nova York: um homem que trabalhava lá esqueceu as chaves do escritório em casa e ficou na porta esperando que o abrissem para ele. Em poucos segundos ouviu os estrondos e seu local de trabalho se transformou em uma bola de fogo. E ele sobreviveu somente por ter esquecido as chaves naquele dia. Foi o que aconteceu…
Os religiosos terão explicações ligadas ao plano espiritual, os astrólogos ao plano astral e os estudiosos das ciências exatas possivelmente diriam: foi o acaso. (E para o colega dele que levou a chave, entrou mais cedo no escritório e morreu, idem…)
De qualquer maneira, podemos pensar em dois diferentes pontos:
Aqueles aspectos sobre os quais temos alguma ingerência; o que faremos em tal situação- possibilidades, rotas de ação ou fuga, opções (e suas consequências) que estão ao nosso alcance.
Por exemplo: a previsão do tempo aponta para chuvas fortes no fim da tarde de amanhã e você, indivíduo zeloso e precavido, leva um guarda chuva e um casaquinho.
E aqueles outros, absolutamente fora de nosso campo de ação: de acordo com a meteorologia, haverá fortes chuvas e possibilidade de alagamentos na cidade. E então você já se prepara para um imenso transtorno e compra suprimentos para um apagão e se mobiliza para passar 3 dias longe dali. Estará agindo guiado pelo medo e pela ilusão de controle, e também pelo exagero que comumente acompanha estas tentativas de “se garantir”.
Entender e aceitar que temos ingerência sobre certos aspectos de nossas vidas onde podemos atuar, mas que em outros pontos estaremos totalmente à mercê do imponderável, da sorte (e isto significa possibilidade, acaso) e poder diferenciá-los é uma sabedoria de pacificação interna.
Costumamos pensar muito nos “se” do passado, ligando-os à sorte ou azar: Se eu tivesse feito (ou evitado) tal coisa, teria sido melhor, por exemplo.
Mas, na verdade só conhecemos a opção- e desdobramento- conhecidos. Portanto, qualquer outra alternativa será teórica, suposição.
É uma injustiça e distorção que todos nós fazemos, mesmo que esporadicamente.
Se, se, se… Não sabemos.
É sorte, azar, possibilidade.
Buscamos a previsibilidade para nos sentirmos em controle: estudamos o ambiente e suas variáveis, pesquisamos possíveis variações e pronto ! Já sabemos o que acontecerá, e qual será nosso melhor comportamento para lidar com a situação.
Às vezes dá certo. Coincidência?
Às vezes não dá certo. Coincidência também?
Você pode ter tido a sorte de não ter adoecido gravemente, perdido um ente querido, seu trabalho ou saúde mental nestes tempos e isto é uma tremenda fortuna.
Mas também pode ter sido vítima do acaso neste longo período e ter passado por maus bocados.
E as “explicações” para uma ou outra situação são somente tentativas de preencher as lacunas de nossos medos e inseguranças. Somente para que tenhamos alguma ilusão de controle e entendimento.
Justamente por isso: por não ter controle nem ideia do porvir é que se torna mais importante pensar na sorte como acaso- coisas que dependem de você até certo ponto, mas daí para frente, não está mais em suas mãos.
E isto pode causar alguma angústia, naturalmente. Gostaríamos de pensar que, tomando as devidas ações e precauções, estaremos seguros e garantidos. Mas, por outro lado, saber que você fez (e faz) o que lhe compete e o resto é sorte/acaso/ possibilidade, é tremendamente libertador.