(De: Saúde mental na pandemia – 60)
“Já viu aquele vídeo do cara que se veste de urso e sai oferecendo abraços pela rua? Ando pensando em fazer o mesmo porque não estou mais aguentando a falta de contato !”
“Quando penso na volta ao normal, confesso que me causa um certo pavor. Passei a temer qualquer aproximação corporal…”
“Não saio de casa. Meus amigos não entendem e me questionam. E como eu também não os entendo, me distancio e perco até a vontade de conversar com eles…”
“Não tenho ideia de como me comportarei quando puder ter qualquer tipo de contato físico. Vou querer grudar nos outros? Fugirei instintivamente? Irei devagar? Um aperto de mão aqui, um abracinho ali, até conseguir voltar a ter confiança para relaxar? Não sei…”
Será que o distanciamento físico nos afasta também emocionalmente?
O distanciamento emocional como consequência do afastamento físico pode ser pensado em 2 aspectos:
Reação natural ou mesmo auto protetora. Não posso ver minha família, amigos, interagir fisicamente. Sofro, mas me adapto e me acostumo. Com o passar do tempo, a falta, saudade e necessidade do(s) outro(s) vão ficando mais leves. É também mecanismo de auto preservação; evita o sofrimento constante. E então as relações ou conexões podem ficar mais diluídas, distantes.
O segundo aspecto se relaciona ao posicionamento e comportamento dos outros. Entendo que o momento exige X, e o outro entende Y. E eu, além de não compreender e aceitar a conduta do outro, a crítico- abertamente e nos desentendemos, ou me distancio silenciosamente. Em ambos casos, haverá um afastamento entre nós.
Somos uma espécie gregária e social; necessitamos de contato para rigorosamente tudo: da sobrevivência até o desenvolvimento da linguagem. Do afeto ao reconhecimento. Da subsistência concreta, objetiva às demandas emocionais.
Entretanto, existem pessoas bastante isoladas neste mundo, fazendo somente um mínimo de contato para sobreviver.
Lembro de um relato que ouvi em viagem há alguns anos atrás sobre um sujeito que vivia totalmente sozinho em uma propriedade enorme, uma espécie de fazenda no extremo Sul da Argentina. Era quase uma lenda local, pois ninguém o via. Somente sabiam de sua existência e isolamento.
No primeiro momento, aquilo me causou forte angústia: um ermitão, em “versão fazenda”? Alguém que poderia passar semanas, meses ou anos sem ver outro ser humano??
(Não exatamente, pois ele teria que pagar impostos, comprar insumos e produtos para a fazenda, e isto o obrigaria a ter ao menos algum contato com outros.)
Há pessoas assim, claro. Vivem em isolamento voluntário, pois assim o desejam. E para estas, a pandemia deve ter afetado em aspectos concretos e logísticos, porém socialmente, não fez diferença. Ficaram como antes.
Neste momento, contabilizamos 1 ano, 2 meses e 18 dias desde os primeiros decretos oficiais de isolamento.
Passamos por vários momentos durante este período: aberturas, flexibilizações, picos da da doença (e de pavor), certa calmaria. Cenários e horizontes de melhora ou de tragédia.
Ondas e variações.
No Brasil, grande cacofonia: cientistas e médicos dizendo uma coisa, governo federal outra, estadual dizendo algo diferente, sua família e amigos com opiniões distintas e você…?
Parece que, cada vez mais, o manejo do distanciamento social, protocolos de segurança e cuidados na pandemia, vai se flexibilizando e sendo customizado.
Chegamos à tamanha falta de critério normativo e condução que parece ter levado ao tal ponto de “customização”: fazemos o que nos parece seguro, coerente e possível.
Eu não vou à lugar nenhum. Não vejo ninguém.
Você encontra com quem quiser, vê família, amigos e viaja.
Outros seguem um critério particular de ver tais pessoas em tais circunstâncias.
O que estas diferenças de entendimento, crenças, necessidades e valores provocam em nossas relações?
Como é que eu, que me privo de contatos, abro mão das minhas próprias necessidades e anseios, pensando que é o certo a fazer, vou digerir o seu comportamento de sair, viajar, fazer o que tem vontade ??
Como é que você, que entende que independente do comportamento, todos nós corremos o risco de adoecer e não há controle- e além disso, o mundo não pode parar, aceita a minha conduta de total isolamento?
Chefes, patrões e superiores trabalham presencialmente e acham que os demais devem fazer o mesmo.
Seus colegas de escola, faculdade, curso, aula, voltaram ao presencial e não entendem sua “nóia”.
E você não entende, nem aceita tamanha tranquilidade. Pensa que isto também é uma forma de negacionismo.
Tudo certo, até um ponto. Cada um faz o que lhe parece coerente. Simples.
Só que não…
Eu aqui, que estou me privando de um monte de coisas, também adoraria encontrar pessoas, passear e aproveitar, me imponho duras restrições em nome do coletivo. E, consequência imediata, penso que se todos agissem como eu e os governantes fizessem a coisa certa, sairiamos todos mais rapidamente desta situação.
E você, pensa que pessoas que se isolam como eu, travam a economia, o andamento do país e até o estado de ânimo geral.
Eu e você éramos grandes amigos antes de tudo isso. E agora??
Não se trata de simplesmente termos visões, ideias ou opiniões diferentes, mas de pensar que o meu comportamento afeta o seu e vice versa.
Entendo que seu comportamento atrasa a minha volta ao normal, porque a doença se dissemina e surgem variantes, já que a vacinação aqui é lenta.
E você entende que o meu comportamento prejudica a economia do país e isto lhe parece mais letal que o próprio vírus.
Incompreensão. Raiva. Culpa.
E assim, além da diminuição de contato automática do momento, podemos também nos distanciar emocionalmente e até “brigar” de maneira silenciosa com alguns.
Passamos a não compreender, ou mesmo aceitar comportamentos de outros e vice-versa. Com isso, a conexão afetiva vai encolhendo e criando um distanciamento.
Eventualmente perdemos a vontade de interagir com estes outros, que passamos a ver como muito diferentes de nós.
Uma vez que não temos poder ou posição de comando, nossos comportamentos são decisões individuais. Entretanto, estamos interligados e nossas ações acabam afetando outras vidas.
Temos aqui riscos de desentendimento e separação, então agora precisamos de paciência, auto compaixão e empatia; entender que o outro sente e reage de maneira diferente. E assim como queremos que nos respeitem, respeitar também as peculiaridades dos outros.
Eu termino onde você começa e você se estende até começar o campo do outro.
Validação. Compreensão. Democracia.
De qualquer forma, alivia pensar que tudo isto é passageiro; quando as interações voltarem ao normal, também voltaremos. Tranquila e respeitosamente.