(De: Saúde mental na pandemia – 62)
Quero ser igual à minha selfie?Quanto ela me representa? A selfie perfeita ainda não se parece comigo, mas chego lá!Quais são os efeitos de selfies em nossa auto estima, nos animam ou detonam?
No museu, selfie: Eu e a Mona Lisa! Na praia, selfie: Eu e o mar! No show, selfie: Eu e a banda tal! Na rua, selfie: Eu e uma vitrine incrível! Ou mesmo: Eu e um incêndio! (Convenhamos, perdemos um pouco a noção…)
O auto retrato é algo bastante antigo. Muito antes do surgimento das máquinas fotográficas, pintores se retratavam, alguns com a ajuda de espelhos.
A partir da invenção das câmeras fotográficas, o primeiro auto registro que se têm notícia data de 1839: uma fotografia que o americano Robert Cornelius tirou dele mesmo em frente à loja de sua família na Filadélfia, EUA.
Vieram as máquinas fotográficas que foram se tornando mais acessíveis e sofisticadas, passando a ter aquele dispositivo que permitia prepará-las para tirar uma foto automaticamente: as pessoas se posicionavam, alguém preparava a foto, acionava o mecanismo e saía correndo para aparecer na fotografia também. E era engraçado, porque às vezes a pessoa não chegava a tempo, ou ia correndo e esbarrava nos outros, eventualmente a câmera caía…
Chegaram os celulares, câmeras foram acopladas e passamos a usá-las para tirar fotos. Viramos todos “fotógrafos”, principalmente de nós mesmos.
Reza a lenda que a pessoa que fez a primeira auto fotografia, tinha a intenção de mostrar um machucado para outro alguém. Jamais imaginaria a propagação que aconteceria a partir deste ato…
Tiramos selfies sem parar; olhamos nosso rosto, observando pontos fortes e procurando os melhores ângulos. Nunca estivemos tão ocupados (e obcecados) com nossa imagem física, especialmente a do rosto.
E agora temos os aplicativos, criados inicialmente para adicionar desenhos, detalhes ou coisas engraçadas às selfies. Em seguida, vieram filtros para cores e efeitos, e na sequência, recursos para melhorar nossas imagens e eventualmente até modificá-las.
Tenho olheiras? Sumo com elas. Meu nariz é largo? O afino. Gostaria de ter olhos mais claros? Sem problemas ! O rosto é redondo para o meu gosto? Resolvo com o filtro também !
Uso aplicativos assim e consigo a imagem perfeita. Ótimo !! Só tem um problema:
Ela não se parece com aquela que eu vejo no espelho.
Então fico infeliz; me sinto mal e muito distante da estética que me agrada e, tenho certeza, também desagrada aos outros.
Quero ter o rosto da minha selfie perfeita e não o meu !!
Os filtros modificam a imagem ao gosto do freguês: qualquer traço, característica ou cor pode ser mudado. São como operações plásticas virtuais que corrigem o que percebemos como partes feias, defeitos.
Experimental? Divertido? Bizarro? Talvez ainda seja cedo para definir ao certo mas, já está provado que causam danos à saúde mental. São uma bomba para a auto estima, fonte de infelicidade e gatilho para toda e qualquer espécie de dismorfia corporal (distorção da percepção da própria imagem) e eventual tentativa de correção estética.
Pesquisas e estudos feitos por profissionais da área de Cirurgia Plástica (especialmente a facial) apontam enorme aumento na demanda por intervenções cirúrgicas, apresentando dados muito preocupantes: pessoas cada vez mais jovens, querendo inclusive se parecer com as próprias selfies (alteradas por eles mesmos usando filtros). São números recentes, crescentes e coincidentes com a existência de tantas opções de aplicativos que modificam as feições nas inúmeras selfies que tiram.
Felizmente, alguns deles já foram banidos pelo estrago à saúde psicológica dos usuários e outros ainda estão sendo avaliados.
O exemplo mais radical e contemporâneo que temos até agora é o do cantor e dançarino Michael Jackson, morto precocemente em 2009 aos 50 anos. Embora dotado de um talento insuperável para a dança e a música, ele teve sérios problemas de ordem psíquica desde cedo, envolvendo também a auto imagem. Submeteu-se a inúmeros procedimentos, atingindo uma imagem totalmente diferente no final.

As transformações são perturbadoras; fotos sequenciais dele mostram mudanças assombrosas que não parecem ter lhe trazido felicidade ou bem estar…
Entendemos então que modificar de maneira violenta nossa aparência física dificilmente nos tornará mais satisfeitos.
É natural e compreensível que pessoas desejem fazer certas cirurgias corretivas, suavizar determinados traços que lhe incomodem muito. São pequenos reparos com fins terapêuticos, que mudam a relação desta pessoa com sua imagem e lhe dão mais auto confiança e bem estar. Isto é muito diferente de querer esculpir o rosto ou corpo de maneira radical.
A possibilidade de tirar quantas fotos desejarmos, nos dá muita liberdade. Não ficou boa? Deletamos. Ficou feia? Não postamos. Seria simples, se não houvesse implicações emocionais.
Tiro 10 selfies quase iguais: mesmo lugar, pose e expressão, mas começo a olhar uma por uma para ver em qual pareço mais bonita, magra ou feliz. E como, “perfeito” é, além de impossível, sem fim- afinal, sempre pode ficar “melhor”, vou ficando insegura e ansiosa, pois sigo em busca da perfeição.
Intervenções estéticas radicais em série e incessantes, são, além de agressivas ao próprio corpo e um risco concreto à saúde, soluções distorcidas em busca de uma imagem também distorcida, guiada por valores externos, superficiais e passageiros.
Não promovem alegria nem auto aceitação, pois estas estão dentro de nós.
E, na maioria dos casos, têm resultado estético aberrante: uma perfeição esfacelada, onde os traços vistos individualmente podem até ser aqueles dos ideais de beleza, porém no conjunto, estampam um ser estranho.
Certamente por não ser real. Cada um tem uma harmonia facial natural, que lhe confere expressão única e especial, independente de “perfeição” estética.
E quando tentamos juntar todas as medidas e formas ideais (e frequentemente de outros rostos) em uma só pessoa, o resultado é falso, visualmente estranho- e muitas vezes até bastante feio.
Estamos lidando com situações novas e tremendamente desafiadoras. Como usar? Qual é o limite? O que queremos transmitir em nossas postagens?
E agora que os eventos sociais se reduziram ou se tornaram inexistentes pelo distanciamento na pandemia, podemos questionar nossa relação com a autoimagem, o excesso de selfies e suas consequências.
Quero parecer perfeita? Esteticamente invejável? Sempre feliz, em companhias e programas incríveis?
Ou parecer comigo mesma; bem, ok ou até mais ou menos na foto, de acordo com o momento real? Postar o que me agrada compartilhando com aqueles que gosto e escolho? Aceitar minha natureza, traços e peculiaridades?
Assumir que tenho qualidades e defeitos estéticos, como todos os seres humanos, e que são precisamente estas características que tornam cada ser único e que a beleza interna e externa é um conjunto muito maior e mais rico do que traços supostamente perfeitos.
Estética, compleição e beleza são atributos não só externos como relativos: o que agrada à uns, pode não agradar à outros. Além disso, se você não gostar de seu próprio conteúdo, nem souber apreciar sua embalagem e apresentação, dificilmente outros o farão. (Aliás, mesmo que o façam, você talvez não acredite neles.)
Auto aceitação, auto apreciação; trabalhar nossas belezas internas, que são eternas e independentes de aparência. É disso que se trata.